Tratados de livre-comércio: quais os riscos para o Planeta?

O Parlamento Europeu começou, em 2014, a negociar vários tratados de livre-comércio. O enorme secretismo com que os processos aconteceram e a perigosidade dos mesmos levaram à organização de milhares de cidadãos. Em Portugal criou-se a Plataforma não ao Tratado Transatlântico, entrevistada neste artigo e que têm vindo a informar e denunciar os riscos destes acordos, dentro os quais, ambientais.

O Parlamento Europeu começou, em 2014, a negociar vários tratados de livre-comércio. Milhares de cidadãos reagiram. Em Portugal criou-se a  Plataforma não ao Tratado Transatlântico: “Desde o seu início associada à rede europeia STOP TTIP, uma aliança com mais de 500 organizações Europeias para promover campanhas e divulgar informações contra o TTIP (1) e o CETA (2)”, referem Ana Moreno e João Gama, membros da organização. Denunciam os acordos como “ameaça para a democracia, o Estado de Direito, o Ambiente, a Saúde, os serviços públicos e os direitos dos consumidores e trabalhadores”. Mais tarde, alargaram a sua atuação e “em 2018, na sequência de mudanças no foco da sua ação” passaram a chamar-se “TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo”, combatendo outros tratados como o JEFTA (3) e trabalhando “na divulgação das ameaças do comércio ‘livre’ e do ISDS (4), bem como na tematização destes assuntos junto de atores políticos nacionais e europeus”.

Fig.1 – Desporporcionalidade gráfica relativa ao número de reuniões versus o carácter das entidades com que se reuniu para negociar os tratados, disponível em https://www.integritywatch.eu/

Ambientalmente, existem riscos transversais a todos os estes recentes acordos, além de riscos específicos de cada acordo em particular. Primeiramente, porque todos ignoram a atual urgência climática ao incentivar o transporte de produtos em longas distâncias — que aumenta largamente a quantidade de emissões carbónicas para a atmosfera. Ana e João falam das taxas aduaneiras “que são eliminadas ou substancialmente reduzidas sem consideração pelos impactos ambientais associados ao transporte nem possíveis práticas de ‘dumping’ ambiental (5)”. E sugerem que, em alternativa, “as taxas aduaneiras reflitam os impactos associados ao transporte e legislação ambiental do país de origem, por forma a que a atividade económica não tenha impactos ambientais insustentáveis e que o comércio internacional beneficie todas as partes”. Os acordos também promovem a harmonização regulatória, ou seja, “tendem a tornar a legislação entre os parceiros envolvidos mais uniforme”.  Isto poderia beneficiar o ambiente, contudo “verifica-se na prática que é a legislação mais laxista que tende a prevalecer”. Deu-se o exemplo do JEFTA, onde apenas 4% das 213 reuniões de negociações foram com grupos da sociedade civil (como ambientalistas). Assim “não admira que sejam os interesses das multinacionais a prevalecer”. Manter a legislação ambiental menos exigente é muito problemático no JEFTA em particular, uma vez que o Japão permite práticas consideradas ilegais pela UE. Uma delas, a pesca de baleias para fins comerciais, entra mais facilmente no mercado com um tratado deste tipo(6). A solução dada pela TROCA seria utilizar a harmonização regulatória como oportunidade para reforçar a proteção ambiental, pautando-a pela legislação mais exigente. Isto “exigiria que a sociedade civil em geral (e os grupos ambientalistas em particular) fosse mais ouvida em todas as fases do processo negocial”. Esta prática tornaria simultaneamente os processos mais democráticos já que até agora têm sido os lobistas os mais representados nos processos negociais (Fig.1).(7) Em Portugal, a informação e as negociações também não foram democratizadas, apesar dos esforços de alguns. Na sequência de uma petição realizada pela TROCA, o assunto foi discutido na AR e aprovou-se a resolução do PAN: “que recomendava que uma votação do CETA fosse precedida de um amplo debate público a ser promovido pelo governo”. O governo “limitou-se a organizar quatro debates em horário de expediente, dois dos quais em sedes de associações empresariais. Num desses, as inscrições estavam abertas  apenas a empresários”, afirmam, acrescentando “A presença da comunicação social foi exígua e o número de cidadãos foi muito reduzido”.

Quanto aos tratados que permitem que as multinacionais recorram ao ISDS, Ana e João afirmam que “serão usados para intimidar os estados que implementem legislação ambien

Fig.2 – Resultados dos processos
litigiosos ao abrigo do ICDS,
disponível em
https://investmentpolicy.unctad.org/in
vestment-dispute-settlement

tal mais exigente que ponha em causa as expectativas de lucro de investidores estrangeiros” e dão o exemplo da multinacional sueca Vattenfall e o estado Alemão  “a empresa tinha planos para construir uma central termo-eléctrica em Hamburgo, mas entretanto o estado aprovou legislação ambiental para assegurar a qualidade de água do rio Elba”, o que a empresa considerou suficiente para inviabilizar o investimento: “Apesar da construção ainda não ter sido iniciada, a Vattenfall decidiu processar o estado alemão através do ISDS.” e “exigiu uma indemnização de 1900 milhões de euros”. Sucedeu-se que “Para evitar correr o risco de pagar este valor, o estado de Hamburgo recuou e não implementou a legislação ambiental que protegia a qualidade da água”. Mas há mais: em 1988 o Canadá baniu um aditivo tóxico para a gasolina e além de obrigado a reverter a situação ainda pagou 13 milhões de dólares aos investidores. Em 2011 o Equador foi obrigado a pagar 1400 milhões de dólares por ter impedido uma prospeção de petróleo que causava graves danos ambientais e populacionais. (Fig.2) (8) O sugerido foi “além de recuar mecanismos como o ISDS ou semelhantes, deveria ser aprovada legislação contra a impunidade empresarial ou um acordo internacional da ONU com esse objetivo” (9). Relativamente às recentes eleições europeias, a plataforma afirma que 5 dos candidatos portugueses agora eleitos “comprometeram-se com um posicionamento face ao Comércio Internacional que proteja as pessoas e o planeta”. Além disso, é importante olharmos para a análise efetuada às posições dos eurodeputados portugueses durante o seu mandato aquando das votações no PE (fig.3) assim como do CETA na AR (fig.4). É importante compará-las com as intenções divulgadas nas últimas campanhas eleitorais, onde apenas PAN, BE, PEV PCP e LIVRE se opuseram oficialmente aos acordos e ao ISDS, reconhecendo-os como uma ameaça ao ambiente e às populações. Contudo, não nos podemos esquecer do que sucedeu na prática em Portugal aquando da aprovação da resolução do PAN, uma vez que não cumpriu os seus objetivos de democratização da informação.

 

Partido CETA JEFTA ‘Reforma’ do ISDS
Bloco de Esquerda todos os deputados votaram contra (nenhum votou a favor)
CDS – Partido Popular todos ou quase todos os deputados votaram a favor (nenhum votou contra)
Coligação Democrática Unitária todos os deputados votaram contra (nenhum votou a favor)
Movimento Partido da Terra todos ou quase todos os deputados votaram a favor (nenhum votou contra)
Partido Democrático Republicano todos ou quase todos os deputados votaram a favor (nenhum votou contra)
Partido Socialista todos ou quase todos os deputados votaram a favor (apenas um votou contra)
Partido Social Democrata todos ou quase todos os deputados votaram a favor (nenhum votou contra)
Fig.3. – Análise dos votos dos eurodeputados Portugueses no Parlamento Europeu disponível em https://www.plataforma-troca.org/analise-dos-votos-dos-eurodeputados-eleitos/

 

Bloco de Esquerda todos os deputados votaram contra
CDS – Partido Popular todos os deputados votaram a favor
Pessoas-Animais-Natureza o deputado votou contra
Partido Socialista todos os deputados votaram a favor (um absteve-se e quinze não votaram)
CDU todos os deputados votaram contra (um não votou)
Partido Social Democrata todos os deputados votaram a favor (11 não votaram)
Fig.4 – Análise dos votos dos deputados na Assembleia da República, informação retirada de: http://hemiciclo.pt/votacoes/41344/final

Apesar de tudo, a mensagem final da TROCA é positiva: “acreditamos que o panorama está mais favorável. Uma parte considerável da população está a acordar para a importância de algumas questões ambientais cruciais para o futuro da Humanidade, e os agentes políticos parecem ter percebido isso na análise dos resultados eleitorais recentes. Isso pode tornar algumas forças políticas habitualmente menos receptivas à nossa mensagem mais dispostas a compreender o nosso ponto de vista, bem como o das associações ambientalistas, que partilham largamente o nosso diagnóstico relativamente às questões do Comércio Internacional.”

 

(1) – O TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) é um acordo de Parceria Transatlântica de comércio de investimento a realizar entre os EUA e a UE, cujas negociações estão atualmente suspensas.
(2) – O CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement) é um acordo econômico comercial e global entre a UE e o Canadá. Foi aprovado no Parlamento Europeu, em 2016, no entanto enquadra-se sobre o guarda-chuva dos acordos que permitem aceder aos mecanismos de ISDS e que por isso têm de ser ratificados por todos os estados-membros da UE. Este é um processo obrigatório ao abrigo de decisão do Tribunal de Justiça da UE na sequência de um processo contra o ISDS instaurado pela Rede Stop-ISDS. Em Portugal, o CETA já foi aprovado na AR e retificado pelo Presidente da República, http://www.presidencia.pt/?idc=10&idi=140272
(3) – O JEFTA é um acordo de comércio entre a UE e o Japão que entrou em vigor a Fevereiro deste ano. Os negociadores passaram a denominá-lo como “Parceria económica” e consideram-no “o maior acordo comercial de todos os tempos”.
(4) – O ISDS (Investor State Dispute Settlement) é um sistema de resolução de litígios alternativo aos tribunais de justiça nacionais. O ISDS permite às multinacionais processar os estados quando considerarem que adotaram medidas/leis que lhes prejudicam as expectativas de lucro. É um sistema que está previsto e vários acordos de livre-comércio internacional.
(5) – “Dumping ambiental” ocorre quando as empresas se aproveitam das legislações de vários países (por exemplo através dos acordos internacionais) para poderem reduzir os custos de mercado de um produto e assim, tornarem-se mais competitivas. Ana M. e João G. exemplificam com “a criação de camarões na Alemanha, que depois são transportados de avião para Marrocos onde são “descascados” e preparados por mão-de-obra mais barata e transportados de novo de avião para a Alemanha para serem consumidos ainda relativamente frescos.”
(6) – Sobre a pesca de baleias com fim comercial no Japão: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/asia/detalhe/japao-vai-retomar-pesca-comercial-de-baleias-em-2019
(7) – Para além das reuniões tidas consultar os valores investidos:
(8) – Consequências ambientais do ISDS consultáveis em: https://lobbyfacts.eu/reports/lobby-costs/all
https://www.plataforma-troca.org/isds-o-adversario-silencioso-dos-ambientalistas/
(9) – Em Julho de 2018 o Conselho de Direitos Humanos da ONU apresentou um primeiro rascunho para um tratado vinculativo (ao contrário dos atuais voluntários) onde lesados poderiam processar multinacionais (inclusive no seu país sede) com o objetivo de penalizar as empresas que têm vindo a sair impunes das violações ambientais e humanas cometidas. Rascunho consultável em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/WGTransCorp/Session3/DraftLBI.pdf