Rio Trancão é nome de poluição? Estudo revela que já não é bem assim

O Rio Trancão, cuja foz está em pleno Estuário do Rio Tejo, foi considerado um dos mais poluídos da Europa. Entre outros contaminantes, o Trancão foi vítima durante muitos anos de indústrias, por exemplo, no Complexo Químico de Quimigal, que usavam mercúrio nos seus processos de fabrico. Uma parte deste mercúrio encontra-se depositada nos sedimentos do leito do rio, os quais foram agora estudados por um grupo de alunos do Colégio Valsassina em parceria com investigadores do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Os resultados são animadores, pois os valores médios de mercúrio são inferiores aos esperados e sugerem que a Foz do Trancão não pode ser classificada como uma área sob riscos graves associados à contaminação de mercúrio.

O Estuário do Tejo é historicamente contaminado por mercúrio industrial particularmente na Cala do Norte (fábrica de soda cáustica e cloro) e na zona do Barreiro (Complexo Químico da Quimigal), onde se localizavam indústrias que no passado usavam Hg nos seus processos de fabrico (Figueres et al., 1985).

O mercúrio (Hg) é considerado um dos metais mais nocivos para o ambiente. O mercúrio é um metal líquido e inodoro à temperatura ambiente. Geralmente é usado na produção eletrolítica de cloro, em equipamentos elétricos, e como matéria-prima de diversos compostos de Hg. É ainda utilizado em fungicidas, conservantes, medicamentos, elétrodos e outros reagentes, no entanto, o seu uso industrial tem vindo a diminuir devido às preocupações de saúde e ambientais, e à legislação associada (Decreto nº 13/2017, de 12 de abril, o qual aprova o Protocolo à Convenção de 1979 sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiras a Longa Distância, relativo aos metais pesados, nomeadamente o chumbo (Pb), o cádmio (Cd) e o mercúrio (Hg); o Tratado mundial celebrado na Convenção de Minamata sobre o mercúrio, o qual foi negociado e concluído em 2013, por iniciativa da União Europeia).

A Foz do Rio Trancão, encontra-se inserida no Estuário do Tejo , onde se dividem as freguesias de Sacavém e Bobadela. Este rio tem uma extensão de aproximadamente 29Km e foi, durante décadas, considerado um dos mais poluídos da Europa e o mais poluído do país devida às descargas poluentes efetuadas por fábricas existentes nas suas proximidades.

Tendo sido um dos rios mais poluídos da europa é provável que muitos contaminantes ainda estejam presentes nos sedimentos. Na realidade, os sedimentos são um importante compartimento dos sistemas estuarinos, interatuando com a coluna de água e sendo substrato de fauna e flora. Os sedimentos são essencialmente compostos por uma mistura de materiais orgânicos e inorgânicos, sendo os seus principais componentes: argilas, quartzo, feldspato, carbonatos associados por vezes a hidróxidos de ferro e manganês e matéria orgânica de origem terrestre e marinha.

Foz do Rio Trancão.

De uma forma geral, o mercúrio existente nos sedimentos resulta da deposição do presente na matéria particulada. No entanto, se as condições hidrodinâmicas (por exemplo, correntes da maré, ondulação provocada pelo vento) forem favoráveis os sedimentos podem ser ressuspendidos. Os eventos de resuspensão podem contribuir para a libertação de contaminantes ligados às partículas sedimentares podendo ocorrer contaminação potencialmente secundária.

Perante o problema e os perigos da poluição associada ao mercúrio, um grupo de alunos do Colégio Valsassina desenvolveu um estudo na Foz do Rio Trancão, onde procuraram responder à questão: Como têm variado no tempo os teores em Hg nos sedimentos da zona intertidal da Foz do Rio Trancão?

Localização da região estudada. A Foz do Rio Trancão tem a forma de um canal com uma profundidade que, em alguns pontos, chega a atingir perto de 40 m sendo a norte delimitada pelos calcários do Cretácico e a sul pelas rochas detríticas (areias, argilitos, arenitos) do Miocénico e, nas suas margens, localizam-se as cidades de Lisboa e de Almada (dados da ICNF- Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas).

Para o desenvolvimento do estudo foi realizada uma saída de campo, na Foz do Rio Trancão, para recolher um “core” de sedimentos, através de um trado, cujo comprimento foi de 43,5 cm. Este “core” foi analisado nos laboratórios do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) de modo a caraterizar a evolução temporal dos teores de mercúrio, matéria orgânica e composição granulométrica.

Parte do Core recolhido na Foz do Rio Trancão.

 

Variações dos níveis de Hg em função da profundidade. Entre os 43cm e os 22cm encontramos níveis relativamente constantes de Hg, aumentando consideravelmente por volta dos 20cm, onde observamos um pico. A partir dos 8cm há um crescimento muito acelerado do teor de Hg até os 5cm, voltando a diminuir após essa profundidade.

Os teores de Hg apresentam-se relativamente constantes até cerca dos 23cm de profundidade. O crescimento dos valores de Hg observado acima destas profundidades  pode estar associado aos projetos quer da construção da Ponte Vasco da Gama quer de limpeza do Rio Trancão. Estes últimos foram implementados logo após a realização da EXPO98, visando a despoluição do mesmo (Manteigas, 2018). As dragagens provocam a remobilização e ressupensão de sedimentos historicamente contaminados e mais antigos que voltam a ser depositados. Entre esses elementos encontrava-se o Hg.. Os primeiros 8 centimetros de sedimento são caracterizados por uma ligeira diminuição dos teores de Hg.

Na figura acima encontra-se representado o Factor de Enriquecimento (FE) em Hg que constitui um indicador do grau de contaminação ambiental relativamente a um valor de referência. No presente estudo foram considerados como valores de referência os teores de Hg obtidos nos níveis mais profundos do registo sedimentar. Valores de FE inferiores a 1,5 reflectem variabilidade natural, enquanto que superiores a 1,5 indicam que uma porção relevante de Hg é derivada de processos não-crustais ou antropogénicos. Apesar de a fonte de contaminação histórica em Hg mais próxima (Cala  do Norte) ter deixado de utilizar Hg no seu processo industrial durante a década de 80, a existência dos FEHg superiores a 1,5 sugere a interligação de diversos processos associados:

a) Ao hidrodinamismo do estuário (marés, correntes, vento) responsáveis pela ressuspensão e posterior deposição dos sedimentos;

b) À pesca de arrasto para apanha de bivalves que também provoca a ressuspensão dos sedimentos;

c) Com as campanhas de dragagem de sedimentos, tal como a que provavelmente influenciou esta zona e que esteve relacionada com a “despoluição” do Rio Trancão e com a construção da ponte Vasco da Gama que tiveram lugar em meados da década de 90.

d) A ligeira diminuição dos FEHg nos sedimentos mais recentes sugere a prevalência do legado da contaminação industrial por um longo período de tempo.

 

De acordo com os dados recolhidos nesta investigação, os valores médios de Hg são muito inferiores (0.42±0.10 mg kg-1) aos obtidos em cores de sedimentos na Cala do Norte (0.99–18 mg kg-1 (Inverno) e 6.9–29 mg kg-1(verão) e no Barreiro (= 15 ± 8.1 mg kg-1 (Inverno) e 12 ± 5.1 mg kg-1(verão)) (Cesário et al., 2017). Os valores obtidos são da mesma ordem de grandeza das outras duas áreas do estuário do Tejo com menores níveis de contaminação: Alcochete (0.43 ± 0.13 mg kg-1 (verão) 0.53 ± 0.17 mg kg-1 (Inverno)) e Vale de Frades ((0.48 ± 0.04 mg kg-1 (verão) e 0.54 ± 0.07 mg kg-1 e (Inverno)) (Cesário et al., 2016). Sendo assim, a região da Foz do Rio Trancão não pode ser classificada como uma área sob riscos graves associados à contaminação por Hg. No entanto, deverão ser desenvolvidos mais estudos envolvendo quer uma cobertura espacial mais alargada da cobertura sedimentar quer medições de Hg nos tecidos dos organismos aquáticos residentes nos sedimentos permitindo avaliar a transferência de Hg dos sedimentos para os organismos.

Agradecimentos

Ao Instituto Português do Mar e Atmosfera por ter disponibilizado os laboratórios de Sedimentologia e Micropaleontologia (Divisão de Geologia e Georecursos Marinhos) e Contaminantes (Divisão de Oceanografia e Ambiente Marinho), materiais e equipamentos para a realização das análises.

Em especial, aos investigadores do IPMA Dr. Mário Mil Homens e Dra Emília Salgueiro pela disponibilidade e por toda a atenção prestada ao longo do trabalho. Foi gratificante trabalhar com profissionais tão qualificados no assunto. A sua orientação e apoio foram determinantes para a realização do presente trabalho.

Referências bibliográficas

Cesário, R., Hintelmann, H., O’Driscoll, N.J., Monteiro, C.E., Caetano, M., Nogueira, M., Mota, A.M., Canário, J., 2017. Biogeochemical Cycle of Mercury and Methylmercury in Two Highly Contaminated Areas of Tagus Estuary (Portugal). Water, Air, & Soil Pollution 228, 257.
Cesário, R., Monteiro, C.E., Nogueira, M., O’Driscoll, N.J., Caetano, M., Hintelmann, H., Mota, A.M., Canário, J., 2016. Mercury and Methylmercury Dynamics in Sediments on a Protected Area of Tagus Estuary (Portugal). Water, Air, & Soil Pollution 227, 475.

MANTEIGAS, André (2018) – Rio Trancão, um exemplo de recuperação. Acedido em: 22 de maio de 2018, no Web site do: Jovens Repórteres Para o Ambiente: https://jra.abaae.pt/plataforma/artigo/rio-trancao-um-exemplo-de-recuperacao/1

FIGUERES, G.; MARTIN, J.M.; MEYBECK, M.; SEYLER, P. – A comparative study of contamination in the Tagus Estuary (Portugal) and major French Estuaries (Gironde, Loire, Rhône). Paris: 1985

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Is Trancão River a synonym for pollution? Study reveals that it is no longer like that

The Trancão River, whose mouth is in full estuary of the Tagus River, was once one of the most polluted in Europe. Among other contaminants, this river was victim of industries for many years, for example, in the area of ​​Barreiro, who used mercury in its manufacturing processes. Some of this mercury was deposited in the riverbed sediments, which have now been studied by a group of students from Colégio Valsassina. The results are encouraging and suggest that the mouth of Trancão cannot be classified as an area under serious risk.

 

The Estuary is historically contaminated with industrial mercury particularly in the Cala do Norte (caustic soda plant and chlorine) and in the area of ​​Barreiro (chemical complex of Quimigal), which were located industries in the past used Hg in their manufacturing processes.

Mercury (Hg) is considered one of the most harmful metals for the environment. Mercury is a liquid metal and odourless at room temperature. It is usually used in the electrolytic production of chlorine, in electrical equipment, and as a raw material of various compounds of Hg. It is also used in fungicides, preservatives, drugs, electrodes and other reagents, however, its industrial use has been declining due to health and environmental concerns, and the associated legislation (Decree nº 13/2017 of 12 April, which approves the Protocol to the Convention of 1979 about the Transboundary Air Pollution Long Distance, related with Heavy Metals, including lead (Pb), cadmium (Cd) and mercury (Hg); the world Accord celebrated at the Minamata Convention about Mercury, which was negotiated and concluded in 2013, by the European Union initiative).

The mouth of Trancão River is inserted into the Tagus estuary, where are divide the parishes of Sacavém and Bobadela. This river has a length of approximately 29Km and was, for decades, considered one of the most polluted in Europe and the most polluted in the country due to polluting discharges made by existing plants in its vicinity.

Having been one of the most polluted rivers in Europe the probability of pollutants still be present in sediments is huge. In fact, the sediments are an important compartment of estuarine systems, interacting with the water column and being substrate fauna and flora. They are composed essentially by a mixture of organic and inorganic materials, and its main components: clays, quartz, feldspar, carbonates sometimes associated with hydroxides of iron, manganese and organic matter from marine and terrestrial origin.

Trancão River’s Mouth.

In general, the existing mercury sediment results in deposition of existing particulate matter. However, if the hydrodynamic conditions (for example, current, ripple) are favourable the sediment may be resuspended.

Faced with the problem and the dangers of pollution associated with mercury, a group of students from the College Valsassina developed a study in Foz do Rio Trancão, which sought to answer the question: How have varied over time the levels of mercury in the sediment of the intertidal zone of Foz do Rio Trancão?

Study area location. The mouth of Trancão River has the form of a channel with a depth that, in some places, it reaches almost 40 m and the north bounded by limestones of the Cretaceous and the south by detrital rocks (sands, shales, sandstones) Miocene and, on its banks, are located the cities of Lisbon and Almada (data ICNF- Nature Conservation Institute and Forestry).

 

To develop the study, a field trip was held in Trancão River’s mouth, to collect a “Core” of sediment, by an auger, whose length was 43,5 cm. This core was analysed in the laboratories of the Sea Portuguese Institute of Sea and Atmosphere (from the portuguese IPMA) to characterize mercury content, organic matter and granulometric composition.

 

Part of the Core collected in Trancão River mouth.

The results were considered interesting and encouraging.

Hg levels change depending on the depth. Between 43cm and 22cm we found relatively constant levels of Hg, increasing considerably by around 20cm, where we observe a peak. From the 8cm to 5cm there is a huge growth of Hg content, returning to decrease after that depth.

The exponential growth between 15 and 8 cm can be explained by the Trancão River clean-up projects implemented after the achievement of EXPO98, aimed at cleaning up the same (Manteigas, 2018). During this process, there have been dredging of the river, which had the effect resuspension of sediments and elements that were already deposited. In those elements was Hg. Therefore, any mercury that was suspended was transported by the river to its mouth, where it was deposited again. So, there has been much above normal levels between certain depths corresponding to these developments. After the end of dredging, the contents return to their average (range observed between 8 and 1cm).

For Mario Mil-Homens, IPMA researcher of Division of Environmental Oceanography and Bioprospecting, the increase of mercury (FEHg> 1,5) suggests the occurrence of anthropogenic contributions in recent 7cm the core, which may be related to the resuspension of the material, since the historical source of contamination stopped using Hg in its manufacturing process since the mid-80’s. Emília Salgueiro, IPMA researcher at Division of Geology and Marine Georesourses, supports this statement and also said that the slight decrease in FEHg in recent sediments suggests the prevalence of the legacy of industrial pollution for a long period of time.

For Mario Mil-Homens, the possible causes of mercury contamination can be related to three factors: estuary hydrodynamics (tides, currents, wind) responsible for the resuspension of the sediments and subsequent deposition; trawling for harvesting of bivalve which also causes resuspension of contaminated sediments; and sediment dredging campaigns, which probably influenced this area and that was related to the “depollution” of Trancão River and the construction of the Vasco da Gama bridge that took place in the mid-90’s.

According to the data collected in this investigation, despite the dredging and the two peaks indicated by the results, mercury levels of Trancão River Mouth region are far from the numbers recorded in areas considered contaminated. The region of Barreiro, where they were found to 42,5µm/g of Hg at sediment (Figueres et al., 1985) has been the target, for many years, to the deposition of industrial waste (which contained Hg) by the Quimigal Industrial Complex and was considered for a long time, a region highly polluted. Thus, the region of mouth of Trancão River cannot be classified as an area under serious risks due to contamination by Hg.

Good news for the environment, but we must remain vigilant to the situation.

 

Thanks

The Portuguese Institute of Sea and Atmosphere for having made available the sedimentology and micropaleontology laboratories (Division of Marine Geology and Georesourses), materials and equipment for carrying out the analysis.

 

Bibliographic References

MANTEIGAS, André (2018) – Rio Trancão, um exemplo de recuperação. Acedido em: 22 de maio de 2018, no Web site do: Jovens Repórteres Para o Ambiente: https://jra.abaae.pt/plataforma/artigo/rio-trancao-um-exemplo-de-recuperacao/1

FIGUERES, G.; MARTIN, J.M.; MEYBECK, M.; SEYLER, P. – A comparative study of contamination in the Tagus Estuary (Portugal) and major French Estuaries (Gironde, Loire, Rhône). Paris: 1985

Andreia Gonçalves, Helena Brandão, Tiago Salem